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quatrocentos gramas

Publicado: 13 de outubro de 2013 em Uncategorized

Começara a chover lá fora, uma densa tempestade de verão.

Deitado na cama, de barriga para cima, observava o trabalho incansável do ventilador de teto. A poeira alcançara o eletrodoméstico e uma  aranha magricela tecera uma teia, cujos fios estilhaçavam-se com o movimento rotativo das palhetas de madeira. Era cedo da manhã, mas não tinha ideia do horário. Esquecera o relógio em um lugar qualquer. O celular descarregado jazia sobre o criado-mudo.

Começara a chover lá fora, uma densa tempestade de verão. era preciso fechar as janelas ou correria o risco de ter o todo o cômodo encharcado. A muito custo, decidiu levantar-se. Primeiro rolou para o lado esquerdo, depois subiu o tronco até se sentar na ponta da cama. Desvencilhou-se do lençol e ficou de pé. Sentiu o vendo frio cortar-lhe a carne. O pênis se retraiu e ele protegeu o órgão com as mãos. Ainda estava nu.

Fechou as janelas com pressa e observou a chuva escorrer pelo vidro. Há quanto tempo não saia de casa? Uma semana? Duas talvez. Fazia pelo menos dois dias que não deixava o quarto e finalmente lembrou-se do peixe no aquário. Ainda estaria vivo, o pobre coitado?

Calçou os chinelos e abriu a porta. Um cheiro insuportável infestava o ar pelo corredor. Seguiu até a sala, onde ficava o aquário, e sentiu que provavelmente o fedor deveria vir do peixe. Que merda! Bowie morreu! Ele deveria estar junto às pedrinhas submersas na água, com seu corpo inerte e sem vida. Ao chegar lá, porém, surpreendeu-se ao constatar que o peixinho estava mais vivo do que nunca e as escamas furta-cor brilhavam como lantejoulas carnavalescas.

A água do aquário estava imunda e ele decidiu esvaziá-lo antes que Bowie morresse de fato. Encheu-o de novo, pegou o potinho de vidro com a ração e salpicou uma boa quantidade perto do castelinho de plástico onde o peixe “dormia” vez por outra. Olhou novamente para o recipiente que tinha nas mãos. Sempre quis saber que gosto aquela porcaria tinha. Por que não tentar dessa vez? E não nos dizem para experimentarmos coisas diferentes todos os dias? Colocou um pouco na outra mão e lambeu. Aquilo tinha gosto de trigo. Nada de novo.

Lembrou-se do telefone. Havia tocado algumas vezes. Não atendera. Melhor checar a secretária eletrônica. Duas mensagens. Em 15 dias, apenas duas mensagens! Será que seriam de Betty? Pressionou de uma vez o botão e escutou.

“Jonas, onde você está que não aparece nesse escritório? Você tem uma semana para pisar aqui e me dar uma boa explicação ou está despedido, hein?”

Apertou novamente

“Jonas? Jonas? Eu sei que você está aí, seu merdinha. Só liguei pra dizer que você não precisa mais voltar nessa porra de escritório! Está despedido! Na verdade, venha logo pra tirar essas tralhas daqui, ou eu jogo tudo no lixo!”

Era o chefe. Foda-se.

O cheiro continuava forte. Foi até o quarto novamente e examinou o banheiro. Quem sabe não esquecera de acionar a descarga. Não havia nada lá. Aproveitou para olhar as quarentonas fuças no espelho. Olhos de ressaca, a barba esbranquiçada ainda por fazer e  as rugas que teimavam em aparecer deixavam-no ainda em pior estado. Envelhecera uns 10 anos naqueles poucos dias.

Abriu a torneira e jogou um pouco d’água no rosto. Enxugou-o com a toalha e seguiu pelo corredor, desta vez, até a cozinha. O odor aumentara consideravelmente. O cheiro impregnava o local. Tão insistente  que o fez buscar um pano de prato na gaveta do armário e amarrá-lo em volta da boca. O novo acessório o fazia parecer um daqueles ladrões de filmes de faroeste, ainda que o fato de estar pelado desse à cena um ar nonsense.

Certamente seria um alimento apodrecido há séculos na geladeira, pensou. Antes de abrir a porta e conferir o que tinha dentro, respirou fundo e prendeu o ar. Ali estava ele, logo na primeira prateleira, bem a sua vista. Quatrocentos gramas de queijo coalho. Pelo menos era o que havia sido antes de o bolor tomar-lhe conta e consumir até a última de suas proteínas lácteas. Droga! Estragou…

Enojado, pegou com a ponta dos dedos o cantinho da embalagem de plástico ainda lacrada, foi até o quarto onde passara os últimos dias e jogou o queijo pela janela. Permaneceu observando-o na calçada por alguns segundos, perguntando-se porque não o jogara na lata do lixo. Não, não. O caminhão demoraria a passar para recolher e teria que continuar suportando o cheiro do queijo apodrecido. Jogá-lo pela janela era quase como um rito de passagem. Era se livrar de algo que não servia mais.

Lá fora, em plena Avenida Aguanambi, um senhor sob um imponente guarda-chuva azul interrompeu a caminhada matinal até a padaria e observou o queijo na alçada. Quatrocentos gramas de queijo bolorento. E tanta gente com fome! Ainda jogaram na calçada… Uma falta de educação! Mas ele não juntou o pacote ensopado do chão. Apenas permaneceu observando, fez cara feia por conta do cheiro, levantou a sobrancelha peluda e seguiu seu caminho.

No quarto, Jonas fechou a janela, retirou o pano de prato da boca e se jogou na cama, ainda sem roupas. Sentiu como se tivesse se livrado de um grande peso. O queijo levava consigo a podridão do mundo. Era uma pena que simplesmente houvesse estragado… Inutilizável. Ah, Betty… O amor são quatrocentos gramas de queijo podre jogado pela janela…

envelhecimento reverso

Publicado: 11 de julho de 2012 em Uncategorized

Bem no canto, sentada junto às grandes formações rochosas banhadas por água salgada, areia e algas, uma menina punha as duas mãos sobre as coxas e mirava o fotógrafo. Fazia pose, assim como o homem de cabelos loiros e lisos, alto como um farol. Homem que, a meu ver, só poderia ser eu.

Embora a fotografia fosse em preto e branco, podia-se notar que minha pele estava queimada de sol. Só de pensar sentia o ardor nas bochechas, sempre tão brancas. Permanecia parado ao lado da mocinha de cabelos castanhos, presos num coque desarrumado pela brisa do mar. A roupa de banho era escura, com bolinhas alvas como a pele dela. Os óculos de sol adornavam a cabecinha inclinada.

Pelo contraste da luz, arrisco dizer que não passava das três horas da tarde. O mar cintilava e as nossas sombras insistiam duras na areia. Era minha namorada, com certeza o era. Não havia mãos entrelaçadas, mas ali se podia notar um olhar suspeito. Meu olhar acinzentado denunciava o amante.

Não faço ideia do contexto. Talvez nossas férias, um feriado na casa de praia de um tio meu. Ou dela, quem sabe. Hoje tudo não passava de suposições. Ângela? Eduarda? Carmen? Beatriz? Catarina. Tinha cara de Catarina. Suposições. Já disse.

Não lembrar a própria vida é inicialmente algo assustador. Agora, sentado no canto da cama de um quarto estranho, na casa de um homem desconhecido que diz ser meu genro, encaro o fato de forma mais natural e até já se tornou passatempo essa brincadeira de adivinhar o passado.

Na verdade, a possibilidade de escolher ser o que quiser, ou mesmo ser alguém novo a cada dia, é reconfortante. Dificilmente escolho ter cometido erros. Só não resisto à ideia de ter traído Catarina, minha namorada da foto, com a Susana, a mulher que me vem visitar de vez em quando.

Susana é bem mais velha que Catarina, mas conserva uma beleza escondida entre as poucas rugas faciais. Veste-se de maneira modesta e elegante e cheira à manga rosa. Os cabelos são curtos, acinzentados. Gosto quando me traz torta de maçã e diz que é a minha sobremesa favorita.

Embora me olhe com frequência no espelho do banheiro e tenha a certeza de que sou um homem de idade avançada, tenho a sensação de um envelhecimento reverso. Aqui dentro, é como se ficasse cada vez mais moço e sábio. Ora, e não são os jovens quem dominam a verdadeira arte de viver?

Dia desses, Susana ligou a televisão para mim. Ela estava sentada do meu lado. Não resisti e passei a mão na coxa esquerda dela. A mulher pareceu se irritar. Então sorri e ela caiu na gargalhada. Corei. Assistimos a um filme. Fiquei fascinado. Um super-herói vestido com as cores da bandeira norte-americana voando sobre os céus de uma cidade imaginária. Susana disse que ele se parecia comigo, com a diferença de que eu era loiro. Decidi que iria me vestir igualzinho ao Super-homem.

Pedi à Susana, com jeito. No final da semana, ela me trouxe um embrulho caprichado. Abri com uma ansiedade quase infantil. Lá estava ela. Azul, vermelha, brilhante. Corri para o banheiro em num lampejo de pudor. Vesti-me com certa dificuldade, pois a malha era demasiadamente colada. Saí meio desajeitado. Susana não conteve um sorriso. Ora, eu era um cara de mais de 70 anos dentro de uma fantasia brilhante e apertada.

Old Superman de Michael Turner

O corpo esguio da foto não mais existia. Porém, eu continuava sendo o mesmo homem, ainda que não recordasse bem dos tempos mais antigos. Aproximei-me da senhora que me observava e a envolvi em meus braços flácidos. Apalpei cada pneuzinho nas laterais das costas curvadas. Senti cheiro de manga e dei-lhe um beijo nas bochechas levemente caídas.

Por um instante ela me era tão familiar que poderíamos ter tido um filho juntos. Não havia tristeza em ser um homem sem passado, quando me via com um presente tão cheio de fulgor. Possuía o vigor e a vontade de viver da mais tenra idade. Seria capaz até me jogar da janela com a ideia tresloucada de poder voar.

A empregada bateu na porta, trazendo um mingau de aveia para o jantar. Olhou sem surpresa para o meu traje novo, colocou o prato em cima da mesa e saiu. Sentei na cama. Susana continuou de pé, com aqueles olhos esperançosos de que eu pudesse me lembrar dela nos tempos em que seu corpo era firme e sensual.

Não toquei no mingau. Odeio mingau, mas a empregada insistia em trazer-me. Permaneceu lá, intocado até atrair moscas. Passamos mais de 3 horas sentados um ao lado do outro; eu e Susana. Nem sequer uma palavra, um suspiro. A respiração controlada obrigava-nos a escutar o silêncio.

Naquele instante, não existiam arrependimentos do passado, nem angústias inerentes àqueles que pensam não ter feito o suficiente. Para mim, a vida começava ali, a cada dia, a cada instante, nova em folha. Descobertas infinitas.

O que será que Susana pensava? Amava-me aquela senhora tão espirituosa? Contemplava-me com a paciência de uma mãe, embora não me tratasse como um filho. Talvez tentasse me dizer algo. As mulheres costumam esperar que leiamos suas mentes intempestivas. O que, certamente não nos ocorre, já que os homens em geral são demasiadamente ignorantes em matéria de percepção do outro.

– Você está muito bonito nessa roupa – finalmente quebrou o silêncio.

– Ah, obrigado! – respondi com animação – Sinto-me renovado!

Susana permitiu-se um sorriso generoso, quase um ensaio à gargalhada. Passou a mão doce nos meus densos cabelos platinados e soltou um “Que saudades, meu velho!”. E saudades de que, ora? E eu não estava ali desde sempre, vivendo a vida que me ofereceram de bom grado e sem reclamações?

Novamente uma leve batida na porta. Um menino loiro e gorducho entrou sem permissão. Olhou-me com feições curiosas:

– Vô, posso usar uma dessas também?

– Só quando tiver idade suficiente para perder o juízo.

perdas

Publicado: 2 de setembro de 2011 em Uncategorized

Silêncio. Eu não sabia o que dizer. Talvez porque não houvesse nada a ser dito. Mentira. Na verdade, tanto precisava ser dito, tantas eram as palavras acumuladas, represadas querendo transbordar do peito, que eu não sabia nem por onde começar.

Olhava para ela de rabo de olho, sem querer dar o braço a torcer. Ela também queria falar, eu sentia. Estava apenas esperando por uma chance. E essa chance, era eu quem tinha de dar, mas não dei. Nunca dava, e meu coração diminuía cada vez mais. Eu era um monstro.

Não era pra ser assim. Em tese, não era mesmo. E uma sensação estranha pairava sobre nós. Eu deveria abraçá-la. Ela deveria ser a pessoa mais importante da minha vida naquele momento. E não era? Eu não sabia. Meus sentimentos estavam completamente confusos.

Não lembro direito o ponto em que as coisas mudaram, porque as coisas não eram assim tempos atrás. A gente se precisava. Eu mais dela que ela de mim, eu acho. E eu me perguntava o que havia se passado conosco para que tudo simplesmente se perdesse daquela forma. Eramos só nós duas sentadas naquela mesa. O silêncio constrangedor que tanta coisa queria dizer, interrompido apenas pelo barulho do biscoito que ela comia com desgosto. O mesmo desgosto com o qual eu a observava mastigar de boca aberta e com os lábios engordurados de manteiga.

Subitamente, bateu-me uma saudade de quando era ela quem resolvia todos os meus problemas. Hoje não dá. Eu cresci. Porra! É uma merda crescer. As crianças deveriam saber disso. E daí? O que elas poderiam fazer?

Aquilo não deve ter durado mais que 5 ou 7 minutos, mas o tempo parecia elástico. para mim eram 5 ou 7 horas que nunca acabariam. Todos os movimentos executados com cuidado. Tinha mais dedos que nunca nas minhas mãos. Saí de lá ainda sem dizer nada e fiquei mais triste ao pensar que, se aquela fosse a última vez que eu a tivesse visto na vida, nada havia sido dito. Seria tarde demais e as últimas palavras teriam sido palavra nenhuma. Chorei sozinha, por dentro, calada, porém, novamente não voltei atrás. Ou ali não haviam sentimentos, ou (como desconfio) havia sentimentos demais.

saudade gelada, doce

Publicado: 27 de julho de 2011 em Uncategorized

 

“Não foi nada. Deu saudade, só isso. De repente, me deu tanta saudade.”

“Deus, põe teu olho amoroso sobre todos os que já tiveram um amor sem nojo nem medo, e de alguma forma insana esperam a volta dele: que os telefones toquem, que as cartas finalmente cheguem”

quando eu era criança, gostava de tomar o sorvete devagar, na tentativa frustrada de adiar o derradeiro fim. o problema era que, ao demorar a saboreá-lo, ele escorria pelas mãos e eu deixava de sentir o gosto de grante parte do bom e velho doce gelado. sobrava-me a casca. e eu comia a casca, feliz.

um dia, conheci alguém chamado Saudade e fiquei pensando no sorvete. dava uma saudade danada de todos os sorvetes que se haviam ido embora, escorridos e limpos em guardanapos. outros apenas marcaram tantas roupas, inutilizando-as para todo o sempre. eu odiava saudade. por isso odiava também Saudade e sorvete. não, nunca mais tomei sorvete.

desde então, foi crescendo em mim uma vontade assassina. eu quis matar todas as saudades, mesmo aquelas que nunca foram. porque a pior saudade de todas, você sabe, é aquela do que nunca existiu. é a saudade de sentir saudade. aquela saudadezinha safada de coisas não vividas, momentos não compartilhados e frases não ditas. e o que consegue ser pior nessa saudade é minha fragilidade diante dela. a impossibilidade de fazer qualquer coisa.  meus joelhos que enfraquecem como os de um velhinho do qual a artrite não teve piedade.

saudade de ter fé em alguma coisa. simplesmente acreditar. mas o sorvete se foi e eu não tenho mais a crença de que os sorvetes possam nos deixar mais felizes. sim, eles podem. podem, mas sorvetes deixam saudades. sãos bons no momento em que existem. depois, além das saudades, deixam um pouco de culpa e gordurinhas abdominais. não importa. desejo sorvete.

queria experimentar todos os tipos possíveis e i(n)magináveis. tocar em todos eles com a língua e me entregar à felicidade de sentir tantas texturas, sabores e odores. eu quero o azedo do limão, o doce do chocolate, o granulado da castanha, a maciez da baunilha, a descoberta do creme com passas, a “delícia” do maracujá, o romantismo do “romeu e julieta”. quero sorvete. ponto final. ponto final, não. reticências, porque eu quero mais sorvete, sempre. até me lambuzar, passar mal, enjoar, e, depois de  um (curto) período de abstinência, voltar a vivenciar todos os mais deleitosos prazeres da gastronomia geladamente cremosa dos sorvetes. saudosos sorvetes que eu aprendi a gostar já na infância, mas que, também cedo, aprendi a odiar. odiar nada. preciso voltar à  procura pelo sorvete certo. aquele, cujo gosto deixará uma eterna saudade e me fará voltar sempre.

ah, mas o sorvete… o sorvete caiu no chão. “deus, como a gente se trai nessas memórias…”

pequena palavra de estímulo: “imagine. invente. sonhe. voe. se a realidade te alimenta com merda, meu irmão, a mente pode te alimentar com flores”

ruptura

Publicado: 22 de julho de 2011 em Uncategorized

chorei. não me pergunte por quê, mas chorei. assim, mesmo sem ter nem pra quê. aquela história não era minha. elas eram todas desconhecidas e aquilo tudo não faria a mínima diferença no meu destino. foi o que pensei.

apesar disso, eu não conseguia evitar as lágrimas que escorriam pela face, sem pudor. “safadas”, disse para elas, mas nem ligaram. continuaram caindo, caindo, caindo. nenhum lenço oferecido para estancar tal catástrofe. afoguei-me no rímel borrado.

elas olhavam para mim como se eu não fosse humana. talvez tivessem razão. isso não era coisa de gente. ou não. quem sabe eu fosse a única “gente” ali. porém, de que adiantaria tal discussão interna se eu não sabia o que fazer com aquele monte de coisa revirando no estômago; aquele monte d’água salgada banhando meu rosto. quem sabe se eu saísse correndo?

continuei parada. tensa. dura. se me jogassem no chão, certamente quebraria como um espelho. para a minha surpresa, elas continuaram a despejar suas vidas em meus olhos, ouvidos e narinas como se eu nem estivesse ali; como se eu tivesse descido por um ralo que acabara de abrir perante nós. eu queria me esconder, queria minha mãe. desejava voltar a ser uma criança que pode ter colo a hora que lhe convém. meu corpo era invadido pelas palavras pesadas, cortantes, doídas.

um filho natimorto. um estupro. um roubo. várias drogas. muitas vidas abandonadas. eu não tinha nada a ver com elas. nada. minha vida era um pirulito. doce e redondo pirulito que eu chupava aos poucos e com desgosto como uma menina mimada. as delas eram esgotos a céu aberto. fedidos, repugnantes, escuros e medonhos. não tínhamos nada em comum. mesmo assim algo me ligava à elas. algo invisível e que eu tentava tatear, sem sucesso.

quando a visita chegou ao fim e eu finalmente consegui sair da penitenciária feminina, parecia que haviam se passado uns 10 anos. meu anel de rubi pesava 100 quilos no dedo. eu era apenas uma advogada, sem poder algum. sem direito a julgamentos, concessões, condenações, etc, etc. não podia fazer nada, nem queria. porque eu sempre quis uma vida tranquila e estava pouco me lixando para os mendigos na rua, para as crianças na África ou para as prostitutas do Centro. eu queria dinheiro, casa, roupas de grife, um marido de boa família, crianças rosadas e gordinhas, viagens para a europa nas férias.  e elas? queriam o quê, essas mulheres?

o filho dela tinha um pouco mais de 4 meses. era pretinho, de olhos vivos e cabelo pixaim. daqui a 2 meses seriam separados, mas ela nem chorava. havia se acostumado, como se acostumara a tudo ali. até mesmo à ausência de liberdade. eu não. sempre quis voar. eu estava indignada.

estava indignada porque elas haviam me levado a um caminho sem volta. a cortina se abrira e o mundo estava exposto. eu estava exposta e, mesmo que quisesse, não podia permanecer inerte. meu corpo respondia. as lágrimas vinham e eu desejava fortemente que tudo fosse diferente. que elas pudessem ter ” dinheiro, casa, roupas de grife, um marido de boa família, crianças rosadas e gordinhas, viagens para a europa nas férias.” mas, não. essa jamais seria a realidade de nenhuma delas e, por isso, elas me incomodavam. elas incomodavam meus sonhos. elas mancharam meu quadro pintado na parede com um tinta permanente. malditas mulheres! maldita eu! tão egoísta dentro desse vestido preto. tão séria em cima do salto alto, da bolsa de couro italiana.

não conseguia esquecê-las. via a mulher de seio murcho que olhava pro chão. ela estava no meu retrovisor. ela segurava uma foto. “essa é minha filha”. tinha mais rugas que a minha bisavó (se eu tivesse uma). ela fedia tão forte que nem mesmo meu chanel 5 resistia a tanta mazela, a tanta desumanidade.

por favor Deus,  tira essas imagens daqui. faz-me esquecer como os que padecem de alzheimer. e me traz de volta para meu santuário, minha redoma de vidro. eu sou uma flor. eu não queria, não queria… em verdade, choro porque, finalmente descobri que amo. amo imensamente esse ser humano desdentado, flácido, enrugado, triste, fedido, rasgado, faminto, ignorante e pobre. amo! amo! que pecado! que pecado, Senhor!

histórias de bar

Publicado: 20 de julho de 2011 em Uncategorized

ele apareceu do nada. bêbado, fedido e rasgado como tantos outros andarilhos dessa cidade. o sotaque tinha um esse puxado como o de um carioca que se perdeu por terras nordestinas. o velho senhor desdentado era poeta e vendia versos para sobreviver,  como uma mãe que vende os filhos. “isso não se faz”.

– três reais.

muito caro. ninguém aceita. ” e quanto vale uma poesia? e um filho, quanto vale?”

– sabe qual o melhor remédio pra tristeza? uma boa trepada – ele diz sem pudor – faz bem pra pele, pra cabeça, pro corpo todo. se você ver alguém com um sorriso inesperado, pode crer que ele fez. façam. façam mesmo! é bom demais!

todos riram e concordaram. e não é que o louco tinha mesmo razão? eu olhava nos olhos dele. ele me encarava de volta.

– que lindos olhos!

– obrigada.

– eu que agradeço tanta beleza.

sorri, sem graça. ele segurou minha mão e a apertou firme. tirou os óculos e olhou através de mim.

– você está apaixonada.

calei.

– você está apaixonada. e pode até negar pra mim, mas pra você mesma não. com o tempo, a gente aprende a ver certas coisas. você está apaixonada.

tentei proferir uma negativa, mas como eu podia, se nem tinha certeza que sim ou que não. nem pra ele, nem pra mim, porque simplesmente eu não sabia. meu coração sim. esse deveria saber a resposta, mas teimava em se comunicar com sinais que minha mente, desordenada, não entendia. ou não queria entender. engasguei.

soltou minha mão e se foi do bar com um sorriso. “minha vida é andar por esse país…” cantarolava.

– boa sorte! – desejei com verdade.

“boa sorte. boa sorte para nós dois.”

 

enganos.

Publicado: 9 de julho de 2011 em Uncategorized

uma vida feita de sonhos

sonhos bons que derretem na boca feito doce

pesadelos que parecem não ter fim

não, não, eles tem fim sim

porque a mente criativa dela gosta de inventar bobagens

cria e recria os personagens da própria história.

e ela pensa que dela tem o domínio.

mas não tem domínio nem de si mesma

que dirá das páginas de um livro

escrito a mil mãos?

engana-se, sofre e sorri.

que boba! ela espera. ela corre e cai.

e se levanta e canta com os passarinhos que viu

no fio da tênue linha da vida

que se punha diante de sua janela.

e se emociona com a voz pequenina da

menina de olhos iguais aos seus como um espelho.

“eu era assim. um dia eu fui assim?”

e a voz engasga, mas a meninha dança

e ela a acompanha em passos despreocupados

como se realmente fossem duas cópias da mesma pessoa

que se encontraram em tempos diferentes.

ela de repente acha que todos os sentimentos

se confundiram em turbilhões.

e o que parecia que era,

já não tinha mais nada que ver.

e o que nunca foi,

tinha finalmente a sua chance.

tão esperada chance.

ela poderia ser feliz.

 

histórias de bullying

Publicado: 3 de julho de 2011 em Uncategorized

– Florêeeencio, me dá o leeenço! Florêeeencio, me dá o leeenço!

gritavam e riam as hienazinhas semvergonhas. depois saíam correndo com medo do menino da cabeçorra.

havia nele ainda mil motivos para se tirar sarro, embora, na verdade, a maioria temesse  seu temperamento difícil e os atos intempestivos de criança maligna. Florêncio não era um querubim, mas um anjo caído, desses que nem mesmo o céu acolheu.

as pernas eram finas como as de um sabiá. o joelho preto de danação e as unhas encardidas de terra. Florêncio tinha a pele branca, cabelos castanhos e olhos verde-amarelados feito os do gato da don’Ana, a vizinha, mulher bondosa como a Ave Maria.

as calças de menino ainda eram curtas e o suspensório evitava que caíssem, dada a extrema magreza. e o que tinha de magro, tinha de ruim, a tal peste nascida do ventre de Rita Perebenta (como era conhecida pelas crianças da redondeza).

quando as traquinagens chegavam aos ouvidos da mãe, Florêncio não escapava da surra. ela o trancava na despensa e, da casa de don’Ana, podia-se ouvir o estalido da sandália de couro no dorso do menino. mesmo com a boca sangrando, ele continuava a sorrir, em provocação. próximo à parede da casa ao lado, as crianças, horrorizadas, choravam. Florêncio, não.

mais tarde, quando a molecada brincava na rua, o anjo caído aparecia. fugitivo, passava correndo e levantava a blusa encardida:

– olha aqui o que a Perebenta fez!

e ria alto, um riso tenebroso, que dava até calafrios na espinha.

dia em desses, em que a filha da don’Ana ganhara de presente do pai pedras novas para o “jogo das pedras”, Florêncio aprontou das suas. as pedras polidas vieram do riacho das oiticicas. os olhos de Adélia brilharam ao vê-las. logo estava jogando com as duas irmãs mais velhas.

as pedrinhas, quando jogadas para o alto, brilhavam ao tocarem a luz do sol. caíam e eram pegas, após um verdadeiro show de malabares. assim, as meninas se divertiam e passavam o tempo de férias sem importunar a mãe na cozinha ou atrapalhar o descanso de seu Raimundo, o pai.

Florêncio, ao passar pela rua desembestado, viu a alegria da meninada com a novidade. e como o cãozinho adorava atrapalhar o divertimento alheio, arrumou um jeito de distrair todo mundo e passar a mão nas pedrinhas.

toda dengosa,  Adélia Melada, como  a chamavam por ser tão “manteiga derretida”, começou a chorar o mundo que se havia acabado. somente horas depois, Florêncio olhou na cara inchada da menina e lhe propôs o seguinte acordo:

– tô com as tuas pedras. se quiser elas de volta, vai ter de me mostrar a calcinha!

– de jeito nenhum!

– então pronto. nada de pedrinhas, sua boboca.

depois de alguns segundos pensando, a menina, cujo pequeno tesouro estava em posses demoníacas, resolver ceder. afinal, era só uma calcinha, ora bolas.

– tá bom.

Florêncio deitou-se no chão e esperou. Adélia, muito tímida, subiu o vestidinho de chita azul celeste e caminhou até o malandro. permaneceu de pé em cima dele até que se desse por satisfeito em vislumbrar sua calcinha foló ainda costurada pela avó Margarida, neta do fundador da pequena cidade.

– tá bom. toma tuas pedrinhas. agora já pode ir.

Adélia foi embora toda cabisbaixa. antes, é claro, passou na igreja e foi confessar tudo ao padre Tenório. não ia poder dormir com um pecado daqueles.

Pe. Tenório, que não era besta nem nada, ficou indignado com a maledicência de Florêncio e foi direto para a casa da Perebenda, digo, da dona Rita, a fim de contar-lhe o causo. dalí a poucos instantes, estava o diabinho de bunda pra cima levando uma coça daquelas.

Florêncio continuou na mesma, e não havia um dia em que não aprontasse alguma. Mesmo quando mudou-se para a capital, depois que a senhora sua mãe bateu o catolé, foi lá mesmo que o já rapazote pintou e bordou.

aqui no interior, apenas chegavam as notícias. teve  uma vez que disseram que ele havia botado fogo na sala de cinema. deu até no jornal. depois dessa, o cabra foi expulso da capital e proibido de voltar lá. agora, só deus sabe onde anda Florêncio. vai ver virou mesmo lenda, que nem os cangaceiros de antigamente.

verdades sobre meu avô

Publicado: 12 de junho de 2011 em Uncategorized

lembro bem daquele dia. o velhinho chegou meio cabisbaixo com seus cabelinhos ralos, branquinhos que eu sempre tive a impressão de que se a gente soprasse, voariam da cabeça dele que nem dentes-de-leão. 

vovó estava sentada na cadeira de balanço com seu tricozinho rosa bebê. eram os sapatinhos da filha de não sei quem, que nem mesmo havia casado ainda. mas ela, sempre com a ideia de que poderia não estar viva a tempo de fazer qualquer coisa, tinha mania de adiantadar tudo. vai ver já tinha até roupinha pro meu bisneto naqueles baús de madeira que ela conservava no quarto.

zuleide anunciou a hora do jantar. vovô caladão. o que não era normal, pois sempre estava rindo com a  dentadura muito nova e brilhante. de vez em quando, ele até tirava e a deslocava com a ponta da língua. velhinho sem vergonha, aquele… dessa vez ele se limitou a suspirar alto e a marchar até a mesa de jantar.

papai continuou ao telefone com seus negócios muito importantes. aquilo me deixava puto. mamãe, há muito custo, voltara do salão de beleza a tempo de jantar conosco. os cabelos “poodle vai à praia”. as unhas vermelhas e muito compridas. teve uma época da minha infância em que cheguei a ter certeza de que minha mãe era travesti. descartei a possibilidade quando a vi nua no banheiro. torci para que as outras mulheres do mundo não fossem iguais à mamãe, pois quem se tornaria travesti na história seria eu.

desliguei os ramones da playlist. joey entoando seu let’s go! é isso aí… vamos lá para mais um sagrado jantar de família dos Yvannovski. minha irmã decerto não viria. devia estar na casa do léo. ambos chapadões depois de fazer sexo adoidado.

sentei à mesa. todos nos lugares de sempre. só o da jú vazio. senti inveja dela. papai com o celular no ouvido. mamãe mostrando as unhas para a vovó, chocada com a modernidade dos esmaltes foscos:

– coisa mais feia! na minha época, quando mais brilhoso, mais bonito…

– a senhora não entende mais de moda alguma, dona clarisse. fique na sua, fique. velha broca (pensamento)

vovó resmungou um “ninguém mais respeita os velhos” e eu dei uma piscadela para a senhorinha, sussurando:

– liga não, vó. a mamãe é travesti.

– é o quê, meu bem?

– deixa pra lá, vó.

papai finalmente desligou o celular. zuleide pôs o jantar. como em todas as quintas-feiras, o prato principal era o kaczka z jabłkami. até hoje não sei falar isso direito. enfim, fazia parte da nossa tradição de descendentes poloneses. nada mais do que pato assado com maçãs. mas vovô, com aquela  carinha de papa polonês, fazia questão de pronunciar bem a sua língua mãe.

demos início ao longo e doloroso processo gastronômico em família. a comida era ótima,  mas o silêncio era constragedor. sempre comia o mais rápido que conseguia, mas os minutos se arrastavam. quando alguém resolvia falar, era merda na certa. dito e feito. 

– papai, o senhor não acha que está velho demais para sair por aí dirigindo?

nie. por quê? já bati o samochód, por acaso?

– não, papai. mas fico preocupado. não bateu, mas é bem provável que aconteça logo. já estou sentindo o senhor meio gagá.

– gagá é o seu tyłek. spierdalaj!

não sabia o que o vovô estava dizendo, mas que ele falando uns bons palavrões isso eu sabia. e estava gostando. até passei a comer devagar, para ter mais tempo de aproveitar a “conversa”.

não vou discutir com o senhor, papai. o senhor é uma pessoa idosa e eu lhe devo respeito.

vovó apenas comia. estava acostumada àquele tipo de conversa e,  para ela, o pato esfriar é que era um sacrilégio. mamãe olhava para ambos com as mãos no queixo, cuidando para não borrar o esmalte. ela sempre gostou de assisir a um bom bate-boca.

vovô ficou calado. deu mais duas garfadas na comida, pegou o guardanapo ao lado do prato, limpou a boca oleosa e respirou fundo. tão fundo que eu até parei de mastigar para ouvir melhor o que ele ia dizer.  

– pois bem. tenho uma rzecz para dizer.

todos silenciaram. só vovó comia.

– eu sou gej.

– tá, papai. senta aí e come.

GEJ! GEJ GEJ! bekart!

eu podia até não saber o que era bekart, mas gej… tinha ouvido em um filme polonês no cinema de arte da segunda guerra mundial. o vovô estava gritando que era gay e eu mal podia acreditar.

– minhas malas estáo prontas. Muszę iść.

e o senhor vai para onde, por acaso?

– vou deixar sua matka e volto para minha querida polska.

vovó continua a comer. o celular toca. papai atende. vovô sobe e pega as malas. eu me ofereço para levá-lo ao aeroporto.

– vô!?

– hm!?

– como é ser um gej na polônia?

nie wiem. ainda vou descobrir.

– posso visitar o senhor qualquer dia?

vovô balançou a cabeça afirmativamente. nos abraçamos, e ele se dirigiu até o portão de embarque. ele não estava mais marchando como de costume. o andar era leve e até engraçado. não é que o polonês tinha enganado todo mundo? é. meu avô é gay. olha que isso dá até nome de filme.

a cinta-liga

Publicado: 3 de junho de 2011 em Uncategorized

(sexo selvagem e sem compromisso)

Nunca imaginei que dona Angélica pensasse em sexo. Muito menos que falasse sobre o assunto ou  pior, que praticasse o tal ato. Mas a senhora que habita a casa em frente a minha, ela me enganou com sua cara de vovó da chapeuzinho vermelho. A mulher com aquele semblante enrrugadíssimo; com aquele sorriso de mulher recatada e bondosa. Jamais suspeitei quem realmente era antes de passar a observar mais através da janela de meus humildes aposentos.

 A estranheza dos atos da dita senhora foi notada quando um rapazola de uns 20 e poucos anos adentrou a casa dela num fim de tarde de outubro. O tipo era másculo, bonitão. Pensei que fosse, quem sabe, um neto seu. Porém, logo descartei a ideia, que me pareceu absurda, uma vez que a mulher, que se dizia viúva, não tivera filhos. Um afilhado, quem sabe? Doce ilusão.

Na porta, ela recebeu o garotão de forma dissimuladamente natural. Um abraço de avó saudosa. Com um gesto malicioso, convidou-o para subir. Deu uma risadinha, aumentando exageradamente as rugas ao redor dos olhos e da boca. Logo em seguida, entraram no quarto. Nesse momento, dona Angélica, distraída que era, esqueceu a cortina da janela de vidro aberta. Por um fresta pode-se ver muita coisa, e meus olhos míopes, porém atentos, viram até mais do que gostariam.

Vi metade do corpo decadente da viúva do doutor Crisálido. Um senhor clínico geral! Ela se aproximou do garotão, que esperava mal sentado na cama. A senhora estava com um roupão em estampa de rosinhas azul-celeste.  De repente, meus olhos não podiam acreditar no que presenciavam. A velha despiu o tecido felpudo que trajava e, embaixo dele, nada mais que uma cinta-liga. Isso mesmo. Uma cinta-liga. Vermelha com rendas. Diria sensualíssima se não vestissem as pernas enrugadas e magras de uma senhora idosa. Teria morrido de um ataque súbito, não fosse meu sempre forte e preparado coração.

O garotão passou a mão nas pernocas da desinibida senhorinha, que subiu na cama com gosto de gás. Fechei os olhos, pois me negava a presenciar a cena. Mesmo assim, não resisti por muito tempo. Aquilo era demasiadamente bizarro para não ser registrado. A curiosidade era maior do que meu desgosto. Voltei a abrir os olhos. Uma cena impagável. A sorte de minha inocência quase perdida foi que uma fortíssima rajada de vento fechou a porta da janela com força. Vai ver era o espírito do Dr. Crisálido. Decepcionada e ao mesmo tempo aliviada, desci e fiquei na calçada de casa a esperar, discretamente, pela saída dos “pombinhos”.

O jovem mancebo não passava de um michê contratado para fins não muito castos, diria. Só sei que, quando terminaram o serviço, a mulher era só felicidade. Não continha um sorrisinho maroto, deixando à mostra a falta dos dois dentes da frente. Nunca mais olhei dona Angélica da mesma forma. Ora, a velhinha gostava de sexo! SEXO! Sexo selvagem e sem compromisso.