Deitado na cama, de barriga para cima, observava o trabalho incansável do ventilador de teto. A poeira alcançara o eletrodoméstico e uma aranha magricela tecera uma teia, cujos fios estilhaçavam-se com o movimento rotativo das palhetas de madeira. Era cedo da manhã, mas não tinha ideia do horário. Esquecera o relógio em um lugar qualquer. O celular descarregado jazia sobre o criado-mudo.
Começara a chover lá fora, uma densa tempestade de verão. era preciso fechar as janelas ou correria o risco de ter o todo o cômodo encharcado. A muito custo, decidiu levantar-se. Primeiro rolou para o lado esquerdo, depois subiu o tronco até se sentar na ponta da cama. Desvencilhou-se do lençol e ficou de pé. Sentiu o vendo frio cortar-lhe a carne. O pênis se retraiu e ele protegeu o órgão com as mãos. Ainda estava nu.
Fechou as janelas com pressa e observou a chuva escorrer pelo vidro. Há quanto tempo não saia de casa? Uma semana? Duas talvez. Fazia pelo menos dois dias que não deixava o quarto e finalmente lembrou-se do peixe no aquário. Ainda estaria vivo, o pobre coitado?
Calçou os chinelos e abriu a porta. Um cheiro insuportável infestava o ar pelo corredor. Seguiu até a sala, onde ficava o aquário, e sentiu que provavelmente o fedor deveria vir do peixe. Que merda! Bowie morreu! Ele deveria estar junto às pedrinhas submersas na água, com seu corpo inerte e sem vida. Ao chegar lá, porém, surpreendeu-se ao constatar que o peixinho estava mais vivo do que nunca e as escamas furta-cor brilhavam como lantejoulas carnavalescas.
A água do aquário estava imunda e ele decidiu esvaziá-lo antes que Bowie morresse de fato. Encheu-o de novo, pegou o potinho de vidro com a ração e salpicou uma boa quantidade perto do castelinho de plástico onde o peixe “dormia” vez por outra. Olhou novamente para o recipiente que tinha nas mãos. Sempre quis saber que gosto aquela porcaria tinha. Por que não tentar dessa vez? E não nos dizem para experimentarmos coisas diferentes todos os dias? Colocou um pouco na outra mão e lambeu. Aquilo tinha gosto de trigo. Nada de novo.
Lembrou-se do telefone. Havia tocado algumas vezes. Não atendera. Melhor checar a secretária eletrônica. Duas mensagens. Em 15 dias, apenas duas mensagens! Será que seriam de Betty? Pressionou de uma vez o botão e escutou.
“Jonas, onde você está que não aparece nesse escritório? Você tem uma semana para pisar aqui e me dar uma boa explicação ou está despedido, hein?”
Apertou novamente
“Jonas? Jonas? Eu sei que você está aí, seu merdinha. Só liguei pra dizer que você não precisa mais voltar nessa porra de escritório! Está despedido! Na verdade, venha logo pra tirar essas tralhas daqui, ou eu jogo tudo no lixo!”
Era o chefe. Foda-se.
O cheiro continuava forte. Foi até o quarto novamente e examinou o banheiro. Quem sabe não esquecera de acionar a descarga. Não havia nada lá. Aproveitou para olhar as quarentonas fuças no espelho. Olhos de ressaca, a barba esbranquiçada ainda por fazer e as rugas que teimavam em aparecer deixavam-no ainda em pior estado. Envelhecera uns 10 anos naqueles poucos dias.
Abriu a torneira e jogou um pouco d’água no rosto. Enxugou-o com a toalha e seguiu pelo corredor, desta vez, até a cozinha. O odor aumentara consideravelmente. O cheiro impregnava o local. Tão insistente que o fez buscar um pano de prato na gaveta do armário e amarrá-lo em volta da boca. O novo acessório o fazia parecer um daqueles ladrões de filmes de faroeste, ainda que o fato de estar pelado desse à cena um ar nonsense.
Certamente seria um alimento apodrecido há séculos na geladeira, pensou. Antes de abrir a porta e conferir o que tinha dentro, respirou fundo e prendeu o ar. Ali estava ele, logo na primeira prateleira, bem a sua vista. Quatrocentos gramas de queijo coalho. Pelo menos era o que havia sido antes de o bolor tomar-lhe conta e consumir até a última de suas proteínas lácteas. Droga! Estragou…
Enojado, pegou com a ponta dos dedos o cantinho da embalagem de plástico ainda lacrada, foi até o quarto onde passara os últimos dias e jogou o queijo pela janela. Permaneceu observando-o na calçada por alguns segundos, perguntando-se porque não o jogara na lata do lixo. Não, não. O caminhão demoraria a passar para recolher e teria que continuar suportando o cheiro do queijo apodrecido. Jogá-lo pela janela era quase como um rito de passagem. Era se livrar de algo que não servia mais.
Lá fora, em plena Avenida Aguanambi, um senhor sob um imponente guarda-chuva azul interrompeu a caminhada matinal até a padaria e observou o queijo na alçada. Quatrocentos gramas de queijo bolorento. E tanta gente com fome! Ainda jogaram na calçada… Uma falta de educação! Mas ele não juntou o pacote ensopado do chão. Apenas permaneceu observando, fez cara feia por conta do cheiro, levantou a sobrancelha peluda e seguiu seu caminho.
No quarto, Jonas fechou a janela, retirou o pano de prato da boca e se jogou na cama, ainda sem roupas. Sentiu como se tivesse se livrado de um grande peso. O queijo levava consigo a podridão do mundo. Era uma pena que simplesmente houvesse estragado… Inutilizável. Ah, Betty… O amor são quatrocentos gramas de queijo podre jogado pela janela…