Arquivo de março, 2011

.morte anunciada: foda-se!

Publicado: 30 de março de 2011 em Uncategorized

(reflexões de um pré-morto)

.vou morrer em breve. deram-me, no máximo (se eu tiver sorte), dois meses. não é cômico pensar em ter SORTE numa hora dessas? sempre me disseram que a morte era a única certeza da vida. outra contradição. a vida é cheia delas.

.minha primeira reação foi esculhambar aquele médico filha da puta, mas depois percebi que de nada adiantaria, já que a culpa não era dele. só estava fazendo o papel de todo médico: tentar me salvar e, em caso negativo, servir de porta-voz para uma morte anunciada.

.não tinha como brigar com deus. a gente já estava nessa a um certo tempo. nem blasfemei nem nada. jamais poderia alegar que  minha vida era de extrema importância para os assuntos divinos aqui na terra. eu, que nem mesmo me dava ao trabalho de dar esmolas aos mendigos a fim de salvar o que restasse de minha alma (se eu realmente tiver uma, é claro).

.pô! eu nem plantei uma árvore nem escrevi um livro, nem nada. o mais próximo que eu cheguei do que chamam de felicidade foi quase ter um filho. nem isso deu. tive problema de caxumba quando era moleque. aí, já viu. nada de filhos. vai ver, foi melhor assim.

.a única mulher com a qual quis juntar meus trapos foi a lúcia, mas ela disse que era impossível conviver com um cara feito eu, cheio de manias (ela odeia o modo como eu me visto e deixo tudo parecendo um bordel de quinta). passamos 3 anos juntos. olhando bem, superei as expectativas, não acha? depois ela foi embora, e eu tive de me contentar com prostitutas. a gente sente necessidades de vez em quando. pelo menos eu podia deixar as coisas feito um bordel (trocadilho besta, eu sei).

.não falei do que vou morrer? ah, sim. pois é… câncer retal com metástase em grande parte do sistema digestivo. é. pode frescar. vou morrer pelo cu. bem propício para um merda como eu. certo. estou mesmo na fase de depressão, mas isso tem que passar rápido, porque estou pensando em aproveitar, sabe? aquela coisa de carpe diem. afinal, ainda tenho uma vida pra viver em 2 meses. e olha que não fiz porra nenhuma durante 47 anos! é uma meta e tanto, temos de convir!

.nasci de parto normal na cidade de Fortaleza, Ce. minha mãe já teve ódio de mim desde esse momento. ela sempre reclamou que eu tinha a cabeça grande demais. que culpa tenho eu? meu pai morreu quando eu tinha 17 anos. cirrose hepática. meu pai era um bebum e a gente não tinha muito contato. ele era mais íntimo da cachaça. passava 24 horas com ela debaixo do sovaco. aposentou-se precocemente e a gente vivia de uma minxaria. minha mãe lavava roupa pra fora. isso a deixava mais puta ainda. tenho 9 irmãos. fui embora de casa aos 18. não fiz faculdade. terminei o colegial aos trancos e barrancos. queria ser delegado. acabei sendo preso por conta de 3 baseados no bolso. me soltaram uma semana depois. enquanto tentava roubar comida, um velho (não sei por conta de quê) foi a com a minha cara e me ofereceu um emprego no supermercado dele. topei.  vivia que nem um cachorro vira-lata. tava com fome e tal… e tô lá até hoje. agora sou gerente, pelo menos.

.não sei por que tô contanto isso. não tem mais nada a ver. deve de ser aquela história que dizem sobre quando vamos morrer e a gente vê a vida toda passar na nossa frente. e pelo que pude notar, não tenho muito do que me orgulhar. o pouco que fiz foi ainda uma grande merda. poderia concorrer ao “MeRdíocre do Século”. pelo menos tenho senso de humor! é uma qualidade, ora bolas! as garotas geralmente gostam. a lúcia não.

.que se foda a lúcia! tenho que aproveitar a vida. ou o resto dela, seja como for. sugestões? tipo… é uma droga pensar no tanto de coisa que eu não fiz! em todas as decisões erradas que eu tomei e tudo que perdi. eu poderia ter sido outra coisa.  na verdade, eu poderia ter sido uma pessoa, de fato.

.sabe o que me vem à cabeça agora? E SE tivesse sido tudo diferente? SE meu nome não fosse adamastor, e sim rodrigo? os pivetes não teriam tirado tanto sarro de mim na escola  e, provavelmente eu teria beijado um número bem maior de garotas. ah, SE minha cabeça não fosse grande… mamãe teria me amado! SE eu tivesse me esforçado e feito uma faculdade… poderia ter sido delegado, até juiz, quem sabe. SE eu fosse mais limpinho e arrumado, lúcia teria ficado comigo? a gente poderia ter adotado um filho. SE eu tivesse dado esmolas àquele velhinho, deus poderia ter gostado só um tiquinho assim de mim… ah… FODA-SE!

.chega de lamentações! sabe o que vou fazer? VIVER! vou pegar o cartão de crédito, comprar passagens para o caribe. tostar no sol sem me preocupar com câncer de pele, comer todas as comidas gordurosas, salgadas e doces (ou seja, com sabor de comida) sem culpa. vou falar para todas as mulheres que eu as amo e vou fazer sexo adoidado. vou até experimentar dar o cu, se der vontade. vou experimentar ópio, vou fazer um bocado de tatuagem. vou dançar nu, no meio da rua. vou tomar banho de chuva descalço sem ter medo de resfriado. vou gastar o dinheiro que tenho e o que não tenho também ( ninguém vai poder cobrar mesmo). vou passar um tempo morando na praia. vou a um templo budista meditar, depois vou a uma igreja dar uma banana pra um padre qualquer. vou mandar uma carta para todos os meus dissidentes afetivos com apenas uma pequena frase: vá se fuder seu grande filho da puta! espero morrer durante uma festa, bebendo com desconhecidos e mangando da vida que tive. eu queria ser cremado, mas posso dizer que não estou nem aí com o que vão fazer do meu corpo. vou tá morto mesmo. problema o de quem fica.

.sabe que estou começando a me animar? ter a morte anunciada, tem lá suas vantagens. já pensou se eu morresse daqui a pouco, atropelado por um ônibus ao cruzar a avenida treze de maio? nem chance de tentar fazer alguma coisa eu teria.  vou morrer sabendo mais ou menos quando, e poderei aproveitar um pouco. devo ser grato por isso? ah, FODA-SE.

.a não-música.

Publicado: 25 de março de 2011 em Uncategorized

Chovia em fios finos, porém suficientes para cobrir o asfalto por um espelho d’água. As luzes dos carros no breu da noite refletiam-se nele produzindo um efeito luminoso fascinante, apesar de artificial. Sempre achei a noite bonita. Não que o dia não possua seus encantos, mas é que à noite, todos os gatos são pardos. A mágica traz certos mistérios que tornam o mundo muito mais instigante.

Com o vidro do carro aberto, eu podia sentir a brisa fria da noite chuvosa. Fechava os olhos e o vento leve soprava em meus cabelos e tocava minhas bochechas. Apesar de triste, me sentia viva. A dor tem esse poder de nos dar a certeza de que estamos vivos.

O pior da tristeza não era o fato de doer, mas sim de não se entender bem o seu motivo. Assim como o tempo, viver me trazia uma certa angústia. Tinha medo de deixar as horas passarem entre os dedos e de não saber o que fazer com a vida. Queria tantas coisas! Tinha tantos sonhos e tão pouco tempo! O ruim de se ter sonhos demais é a frustração de não poder realizá-los todos. E eu já sabia disso desde muito cedo.

Quando o ouvi tocar, foi impossível conter as lágrimas. Sempre fui sensível demais à música. O piano dançava em minha mente. As mãos sobre as teclas, a boca fechada, os olhos cerrados e o coração dilacerado do pianista. Eu chorava e ele sentia. Não me olhava porque me via nas teclas, nas notas, nas partículas encarregadas de transportar o som de nossas almas atormentadas.

O toque final. O som final. Agudo, firme, definitivo como foi o que vivemos mesmo sem termos estado lá.  Não segurei sua mão, nem ele a minha. Jamais vi seus antepassados. Nem mesmo sabe quem sou, o pianista. No entanto, me conhece, mais que a mim mesma, e eu o invejo por isso.

As cortinas se fecham. Meus olhos, agora fechados sob a fina chuva de abril, lembram bem. Rasos d’água. Sempre tive essa mania de chorar no escuro entre a multidão entretida pelos espetáculos que tentavam reproduzir a vida. Será que alguém me viu? Sim. Ele viu. Ou pelo menos sentiu, pois eu estava lá, no piano, na música, nos olhos fechados do pianista.

Da dor, agora sei bem o motivo. Foi pela não-vivência da vida. Pela pré-destruição do não construído, pela morte do que nunca existiu, pelo fim do que nunca teve um começo. Chorei por nós, que nunca nos conhecemos. Sofri diante da possibilidade de que isso nem mesmo chegasse a ocorrer. O que teríamos feito nós? Como seria nosso primeiro encontro? O que seria dito?Jamais se saberá. Porque a música acabou, e o pianista desceu do palco.

.traída pela memória.

Publicado: 16 de março de 2011 em Uncategorized

– e se eu lembrar de você nas coisas mais bobas?

– tire uma foto delas e guarde num álbum de lembranças. assim não haverá perigo de você me esquecer. nem mesmo quando estiver uma velhinha com alzheimer.

.tem gente que parece fazer questão de que não a esqueçamos. talvez seja uma espécie de egoísmo involuntário que a  faz querer permanecer impregnada em nossa mente para que um dia, se não houver mais ninguém, estejamos lá como um consolo. isso é cruel. mas quem já não o fez?

.foi tanto que, mesmo anos após você ter ido embora da minha vida, lá estava eu pensando em você. assim, sem motivo aparente. de vez em quando acontece, por conta das tais coisas bobas. nem precisei fotografar. ficou tudo gravado na mente. e não adianta, porque, quanto mais se tenta apagar, mais colado fica.

.passei por entre as árvores. nunca estivemos ali juntos. não havia motivos para eu lembrar de você. o lugar era seguro. no entanto, bastou apenas parar para escutar. parecia a revolução dos sapos. guoup. guoup.goup. GOUP-goup-Goup. a chuva despertara-os,  assim como despertava em mim uma vontade incontrolável de viver, como se regasse uma semente que permanecera latente em um lugar que não sei bem onde fica.

.simplesmente, lembrei de nós. só porque costumávamos caçar sapos no lago perto da casa de verão. gostava de tocar a pele escorregadia dos pequenos anfíbios. mas agora, o som alto causava-me vertigem. olhei para cima e a chuva também não parecia ter piedade. você ainda lembra de como gostávamos da chuva? de tomar banho deixando a roupa transparente colar no corpo? saudades daquelas nossas irresponsabilidades juvenis. naquela época não nos preocupávamos com um resfriado posterior. e daí? a única coisa que importava era o prazer momentâneo que nos unia. a única forma de nos aquecermos era manter nossos corpos o mais próximo possível. era bom sentir o colorzinho de nós.

.depois da chuva, uma xícara de café. quente e maternal. mais uma vez os pequenos detalhes me traem e o trazem de volta para mim. mais uma vez sacaneando a tentativa de me manter serena. característica que sempre persegui e jamais consegui alcançar.

.derramei café na sua blusa branca de botão. nunca saiu direito. você ficou cheirando à cafeína e eu gostei. café me lembra você. depois de nós, a vida nunca mais foi a mesma. sapos não são só sapos. chuva não é só chuva e café não cheira apenas a café.  tudo lembra você e te odeio por isso. sabe por que? porque é preciso muito amor pra te odiar dessa forma. então, por favor, lembre-me de te esquecer!